A pandemia e a tragédia dos comuns

Iago Dalfior
3 min readJun 5, 2021

A PANDEMIA E A TRAGÉDIA DOS COMUNS postado em Biologia Política

A pandemia vai durar mais do que deveria. É possível realizar tal amarga previsão com uma boa clareza a essa altura do campeonato. As trapalhadas do governo tornam tudo pior para quem está no Brasil, sem dúvidas, mas gostaria de convidar o leitor a refletir sobre o tema de modo mais geral: Como o sistema internacional falha em produzir resultados eficientes diante de problemas coletivos.

Antes de expor essa perspectiva, cabe ressaltar que os constrangimentos do sistema, embora potentes, não são absolutos e podem se dissolver mediante o nível de ameaça percebida. Desde que o coronavírus surgiu, o mundo se mobilizou em um esforço uníssono para combater o inimigo em comum, que ameaçava a todos, sem distinção geográfica ou econômica. Numa analogia cinematográfica, o coronavírus seria uma invasão alienígena e os nossos cientistas e profissionais ligados à saúde, nossos soldados. Vacinas foram desenvolvidas em velocidade assombrosa, contrariando todas as estimativas.

Todavia, após um ano de convivência com o vírus, a altíssima resiliência e adaptabilidade humana fez com que boa parte de nós, hoje, já não o enxergue como uma ameaça tão grave assim, provocando uma dissolução na vontade política de outrora. Consequentemente, se a produção da vacina conseguiu superar a lógica do sistema, sua distribuição está totalmente comprometida.

O modelo de combate à pandemia mais racional seria distribuir e aplicar as vacinas proporcionalmente às áreas de contágio. A parte mais difícil da logística seria o mapeamento da pandemia, mas graças à tecnologia atual, é possível monitorar o desenvolvimento da doença com alta precisão. Feito isso, caberia aos governos se articularem nos órgãos internacionais para definir estratégias de transporte, armazenamento e pagamento das vacinas por aqueles que as receberão.

Porém, há dois fatores que impelem os Estados a um caminho avesso. O primeiro é que cada governo tem compromisso tão somente para com a sua população. O segundo é que a dinâmica de relacionamento entre os Estados é pautada pela política de poder, o que torna qualquer recurso passível de instrumentalização para se projetar frente aos outros.

A pandemia se revelou uma boa janela de oportunidade para auferir ganhos políticos e os mandatários de todos os países estão cientes e sedentos por isso (mesmo aqueles que não precisam se preocupar com eleições). A meta passou a ter sua própria população vacinada e de preferência primeiro que outros, a despeito do impacto da pandemia nesses países, como a Nova Zelândia, por exemplo, que mesmo sendo relativamente pouco afetada, já possui mais doses que habitantes.

Se por um lado a vacinação pode proporcionar ganhos políticos na ordem interna, o mesmo se verifica na ordem externa. Se engana quem acha que a distribuição das vacinas está regida pelas leis de oferta e demanda, uma vez que um número limitado de Estados já comprou quase todas as doses previstas para produção (e esses contratos envolvem barganhas e vantagens que só Deus sabe) todos os outros ficam a mercê de quem detém os estoques de vacina.

Além disso, mesmo os laboratórios privados fazem parte do jogo político. Estas empresas receberam bilhões de investimento para desenvolverem um produto capaz de retornar muito mais. Isso não é mero ‘humanitarismo estatal’. Elas são obrigadas a corresponder aos interesses do seu Estado patrocinador. O alto capital e os Estados estão imiscuídos na geopolítica desde as Navegações.

É nesse momento que o governo brasileiro bate cabeça. Se vê atordoado entre a Coronavac e Pfizer pois não soube se preparar para a guerra da vacina. Chegamos ao ponto de presenciar um lobby aberto da embaixada chinesa para derrubar Ernesto Araújo, uma humilhação diplomática em retaliação ao desvario do chanceler.

Retorno à ideia central com a qual abri esse texto: o sistema internacional reproduz um cenário de tragédia dos comuns, pois se a primeira vista pode parecer natural, e até meritório, que cada país consiga fortalecer a si próprio na pandemia, é necessário ir além e enxergar que o prolongamento da pandemia traz externalidades que anulam esses ganhos. Em um contexto globalizado e interdependente como o qual vivemos, deixar que grandes regiões do planeta permaneçam se debatendo contra o coronavírus significa arcar com prejuízos materiais, devido às grandes cadeias globais de produção e consumo, além de um potencial ressentimento generalizado, tensionando mais ainda as relações internacionais.

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